Pular para o conteúdo principal

O conto do covarde, de Vanessa Gebbie


O conto do covarde
Vanessa Gebbie
Tradução de Sibele Menegazzi
Editora Bertrand Brasil, 2014, 378p.

Meu nome é Ianto Jenkins. Sou um covarde.

São palavras que já ecoaram antes por esta cidade. E hoje serão ditas novamente por Ianto Passchendaele Jenkins, agora miúdo e grisalho, de jaqueta cáqui e boné quase da mesma cor, o mendigo que dorme na varanda da Capela Ebenezer, num banco de pedra, com a mochila como travesseiro e um relógio sem ponteiros caído nas lajotas ao lado de suas botas.

As palavras serão ditas diante da Biblioteca Pública a um menino chamado Laddy Merridew. Serão entreouvidas pela estátua da cidade - um carvoeiro esculpido a parti de um único bloco de granito, com uma pilha de carvão em volta das botas. Página 7.

Há muitos anos atrás, assisti ao filme de John Ford, Como era verde o meu vale, de 1942 (ganhou o Oscar), sobre uma pequena comunidade mineira do interior do País de Gales; daquelas vilas que giravam em torno, exclusivamente, das minas de carvão. Huw Morgan, já com mais de cinquenta anos, se recorda (em flashbacks) de seus pais e seus irmãos, que trabalhavam, com o pai, na mina de carvão. Até que seu proprietário resolve diminuir os salários, é deflagrada uma greve, que acaba por dividir não apenas a família Morgan, mas toda a cidade. 

Lembrei-me imediatamente do filme, à medida em que avançava neste excelente romance de Vanessa Gebbie, recém-lançado, por aqui, pela Bertrand Brasil, na tradução de Sibele Menegazzi. Outra referência que vem à mente - apesar de eu não ter lido mais de um o dois contos - são os Contos de Canterbury, de Chaucer.


Há, sem dúvida, algo de Chaucer, principalmente pela opção da autora em trazer as histórias dos personagens da cidade pela voz do mendigo Ianto Passchendaele Jenkins como O conto do professor de marcenaria, o conto do afinador de piano, o conto do secretário.

Gebbie é renomada contista, além de tutora de escrita. Este que é o seu primeiro romance é também uma história sobre o contar histórias - afinal, Ianto é a memória desta vila, e ao contar as vidas de seus personagens para um menino esquisito como Laddy Merridew, que está morando com sua avó (os pais se separaram), o faz também para um número razoável de moradores, que já não se lembram dos fatos ocorridos à época do fatídico acidente na minas Gentil Clara. De acordo com a própria autora, a cidade fictícia é inspirada em Twynyrodyn.

Outro aspecto que chama a atenção é a estranheza dos nomes dos personagens: Thaddeus Icaro Evans, Jimmy "Meio" Harris, Simon "Tsc-Tsc" Bevan etc. Isso não foge à percepção de Laddy que, cada vez mais curioso, aproxima-se de Ianto, que não se nega a contar-lhe o que aconteceu com os personagens e seus pais e mães.  



A sobreposição de histórias, contadas por Ianto tem, na trama, a função de resgatar a memória de toda a comunidade, e o faz com doses bem temperadas de lamento, luto e humor. À medida em que as histórias avançam, surge a história do próprio contador (o conto do covarde) - e seu "papel" na tragédia da mina Gentil Clara. Ianto é um Homero, não um bardo cego, mas um mendigo desdentado, e acaba narrando o épico da comunidade carvoeira do sul de Gales.

Comentários

  1. Perfeito a relação com o filme de Ford. Alias os filmes de Ford precisam ser revistos - para mim e o nosso grande critico A Moniz Vianna - o maior diretor de cinema de todos os tempos. E guru maior do único gênero de obra de arte exclusivamente cinematografia: o western. E.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei...

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa...

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n...