Götz e Meyer
David Albahari
David Albahari (1948) nasceu na Sérvia e vive no Canadá. O The Guardian já o chamou de "Kafka sérvio". Outros o associam a Sebald, pela sua obsessão com a história e a memória, e a Thomas Bernhard, pela opção pela narrativa em um longo parágrafo; para Manguel, é um merecedor do Nobel de Literatura. Não faltam bons motivos para conhecê-lo. A Amazon adivinhou isso, e me "sugeriu" o autor há alguns meses. E eis que, à falta de uma edição brasileira, recorro mais uma vez ao Kindle.
Götz e Meyer. Uma vez que nunca os tenha visto, posso apenas imaginá-los.
Este romance é, na realidade, um longo parágrafo, de cerca de 180 páginas, é narrado por um professor de literatura, celibatário e obsessivo, que busca reconstruir a árvore genealógica de sua família, morta em um campo de concentração, o que o leva ao museu judaico de Belgrado. Logo descobre documentos que o levam à dupla Götz e Meyer, que dirigia o caminhão Saurer, onde sua família foi colocada para morrer por asfixia pelo monóxido de carbono e, em seguida, desovados em covas coletivas. Os judeus entravam no caminhão pensando que seriam levados para outro campo, talvez melhor (Romênia ou Polônia, quem sabe...).
Afinal, quem foram Götz e Meyer? O que faziam? O que pensavam? Sim, eram simples motoristas da SS, ainda que usassem o uniforme. Sabiam de tudo o que acontecia. Talvez não dessem a mínima. De qualquer forma, seu objetivo é conhecê-los, de alguma forma. Sem muito sucesso, e como dito na primeira frase do livro, põe-se a imaginá-los, e o faz de um modo ao mesmo tempo angustiado e levemente irônico. Logo descobre seus nomes: Wilhelm Gotz e Erwin Meyer. Às crianças que eles embarcavam, Götz, ou talvez Meyer (são centenas de "dúvidas" do narrador) distribuíam chocolates. Morriam minutos depois. A descrição de Albahari é mesmo documental. Acurada, sem se esquivar dos detalhes mais crueis. Um romance que mais se parece um livro de não-ficção - essa é apenas uma forma de ver este livro.
Para realmente compreender as pessoas reais como meus parentes, tenho primeiro de entender pessoas irreais como Götz e Meyer.
Não há conforto na morte, disse a mulher que encontrei no Museu Histórico Judaico, especialmente, naquela morte que outra pessoa escolhe para você. Eu não pensava neles. Eu gritei, para mim mesmo, porque essas pequenas consolações são a única arma com a qual posso suportar a falta de sentido e o vazio horrível dos rostos de Götz e Meyer.
Mas Albahari vai além do romance-documentário; além da investigação dos fatos e procedimentos adotados pelos alemães em 1941-1942, e além da reconstrução das vítimas anônimas e dos carrascos, o autor trata da própria gênese do livro e a evidente dificuldade em desenvolvê-lo. E aqui, atenção: enquanto o anônimo narrador nasceu em 1940 (e sobreviveu escondido pela mãe, que também escapou), Albahari é de 1948, ou seja, nasceu após o término do conflito e da ocupação alemã. Para uma obra que joga com a memória, trata-se de um detalhe não deve passar em branco. Talvez aí o livro lembre (embora em um tom completamente diferente) o recente livro de Laurent Binet (HHhH). É possível escrevê-lo? Para quê (ou quem)?
Mas há, ainda, uma terceira "frente" em Götz e Meyer. Há uma crítica aos alunos. Há, por parte do professor, um grande projeto pedagógico que, por sua vez, parece lhe causar uma imensa frustração. Seus alunos teriam interesse no tema? Como eles se comportariam? Nesses tempos esquisitos do século XXI, o professor resolve levá-los para o campo de concentração. Propõe-lhes um exercício: devem se imaginar como um de seus parentes. Uma estudante diz categoricamente que não deveria ir ao campo se não permitissem que ela levasse... seu animal de estimação! Afinal, isso seria desumano! Outro afirma que ir para o campo teria sido a "grande aventura de uma vida".
Talvez esse seja o elemento mais assustador deste excelente romance de Albahari.
Götz e Meyer. Uma vez que nunca os tenha visto, posso apenas imaginá-los.
Este romance é, na realidade, um longo parágrafo, de cerca de 180 páginas, é narrado por um professor de literatura, celibatário e obsessivo, que busca reconstruir a árvore genealógica de sua família, morta em um campo de concentração, o que o leva ao museu judaico de Belgrado. Logo descobre documentos que o levam à dupla Götz e Meyer, que dirigia o caminhão Saurer, onde sua família foi colocada para morrer por asfixia pelo monóxido de carbono e, em seguida, desovados em covas coletivas. Os judeus entravam no caminhão pensando que seriam levados para outro campo, talvez melhor (Romênia ou Polônia, quem sabe...).
Afinal, quem foram Götz e Meyer? O que faziam? O que pensavam? Sim, eram simples motoristas da SS, ainda que usassem o uniforme. Sabiam de tudo o que acontecia. Talvez não dessem a mínima. De qualquer forma, seu objetivo é conhecê-los, de alguma forma. Sem muito sucesso, e como dito na primeira frase do livro, põe-se a imaginá-los, e o faz de um modo ao mesmo tempo angustiado e levemente irônico. Logo descobre seus nomes: Wilhelm Gotz e Erwin Meyer. Às crianças que eles embarcavam, Götz, ou talvez Meyer (são centenas de "dúvidas" do narrador) distribuíam chocolates. Morriam minutos depois. A descrição de Albahari é mesmo documental. Acurada, sem se esquivar dos detalhes mais crueis. Um romance que mais se parece um livro de não-ficção - essa é apenas uma forma de ver este livro.
Para realmente compreender as pessoas reais como meus parentes, tenho primeiro de entender pessoas irreais como Götz e Meyer.
Não há conforto na morte, disse a mulher que encontrei no Museu Histórico Judaico, especialmente, naquela morte que outra pessoa escolhe para você. Eu não pensava neles. Eu gritei, para mim mesmo, porque essas pequenas consolações são a única arma com a qual posso suportar a falta de sentido e o vazio horrível dos rostos de Götz e Meyer.
Mas Albahari vai além do romance-documentário; além da investigação dos fatos e procedimentos adotados pelos alemães em 1941-1942, e além da reconstrução das vítimas anônimas e dos carrascos, o autor trata da própria gênese do livro e a evidente dificuldade em desenvolvê-lo. E aqui, atenção: enquanto o anônimo narrador nasceu em 1940 (e sobreviveu escondido pela mãe, que também escapou), Albahari é de 1948, ou seja, nasceu após o término do conflito e da ocupação alemã. Para uma obra que joga com a memória, trata-se de um detalhe não deve passar em branco. Talvez aí o livro lembre (embora em um tom completamente diferente) o recente livro de Laurent Binet (HHhH). É possível escrevê-lo? Para quê (ou quem)?
Mas há, ainda, uma terceira "frente" em Götz e Meyer. Há uma crítica aos alunos. Há, por parte do professor, um grande projeto pedagógico que, por sua vez, parece lhe causar uma imensa frustração. Seus alunos teriam interesse no tema? Como eles se comportariam? Nesses tempos esquisitos do século XXI, o professor resolve levá-los para o campo de concentração. Propõe-lhes um exercício: devem se imaginar como um de seus parentes. Uma estudante diz categoricamente que não deveria ir ao campo se não permitissem que ela levasse... seu animal de estimação! Afinal, isso seria desumano! Outro afirma que ir para o campo teria sido a "grande aventura de uma vida".
Talvez esse seja o elemento mais assustador deste excelente romance de Albahari.
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