Pular para o conteúdo principal

O oficial e o espião


A pandemia impediu o lançamento nos cinemas por aqui, mas já está em várias plataformas de streaming. O filme ganhou vários Césares, inclusive o de melhor diretor, algo que, em se tratando de Polanski, sempre gera confusão e ataques. No caso, protestos na porta do local da cerimônia; pouco depois, houve a demissão coletiva da diretoria da Academia Francesa...

O filme parte da visão do tenente-coronel Georges Picquart (Jean Dujardin) do famoso caso Dreyfus (Louis Garrel), que mobilizou a França por anos e até hoje ainda rende acaloradas discussões. 

A cena inicial, com Dreyfus sendo humilhado em cerimônia pública, perdendo suas condecorações, sua espada e seu quepe, é conhecida por todos que já leram a respeito do caso. Sua ilustração apareceu em diversos jornais da época. 

O antissemitismo é a tônica da história. O próprio Picquart não esconde de ninguém - nem de Dreyfus - o pouco apreço que tem pelos judeus, ainda que reafirme que em nenhum momento tenha se deixado levar por isso em sua avaliação do capitão.

William Shirer, em seu livro A Queda da Terceira República, conta, com detalhes, o caso e todo o contexto político da época. França e Alemanha disputavam o carvão da rica Alsácia-Lorena (a Alemanha tinha tomado Strasburg na guerra de 1870); Dreyfus era oficial da artilharia e, numa lista de possíveis envolvidos, era o único judeu. Sua condenação, após um julgamento secreto, foi unânime, e o capitão, enviado para a Ilha do Diabo, "rude povoado onde a França instalara um presídio a largo da costa escaldante da América do Sul", escreveu Shirer.

Após a prisão de Dreyfus, o promovido Picquart acaba, aos poucos, percebendo que seu antigo aluno não era, de fato, culpado, e sim o major Esterhazy, que vivia em dívidas de jogo. E vemos Picquart sendo ameaçado pelo Estado, ao mesmo tempo em que recebe apoio de diversos escritores, como Zola (cuja morte, por envenenamento, é até hoje objeto de mistério e discussão).

O caso rachou o país por décadas, e Shirer o considera um dos fatores que levaram à falência da República em 1940. Famílias foram divididas em dreyfusistas e antidreyfusistas. 

Em O caminho de Guermantes, o terceiro livro de Em busca do tempo perdido, Proust nos apresenta às intermináveis discussões nos salões franceses a respeito do caso e o antissemitismo escancarado de vários personagens, de de Charlus e o príncipe de Faffenheim, "o antissemitismo em pessoa", diria a sra. de Marsantes. E, de certa forma, antecipa o comportamento da sociedade, aplicável a inúmeras situações:

O pequeno grupo que se reunia para tentar perpetuar e aprofundar as emoções fugidias do processo Zola, da mesma forma fava grande importância a esse café. Mas era mal visto pelos jovens nobres, que formavam a outra forma da freguesia e tinham adotado uma segunda sala do café, separada de outra somente por um leve parapeito decorado de vegetação. Consideravam Dreyfus e seus partidários como traidores, embora, vinte e cinco anos depois, quando as ideias já tinham tido tempo de se classificar, e o dreyfusismo de assumir certa elegância na História, os filhos, bolchevizantes e valsistas, desses mesmos aristocratas jovens devessem declarar aos "intelectuais" que os interrogavam, que certamente, se tivessem vivido naquele tempo, seriam partidários de Dreyfus, sem mais saber ao certo o que fora o Caso do que o que foram a condessa Edmond de Pourtalès ou a marquesa de Galliffet, ambas esplendores já extintos no dia em que haviam nascido.


Comentários

  1. O diretor, agora maldito. O filme, agora pouco badalado. Mas continuam excelentes o diretor e o filme. E o roteiro, excelente, pq não foca a pessoa do Dreyfus, q por sinal - em todas as versões que lemos ou vimos - não sai muito bem.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

Conto da semana - Saki

O conto da semana é   A Porta Aberta , de Saki, ou melhor, Hector Hugh Munro (1870-1916). Saki nasceu na Índia; o pai era major britânico e inspetor da polícia de Burma. O autor morreu no front francês durante a I Guerra. Já havia falado dele num post sobre a coleção Mar de Histórias , de Ronai e Aurélio, bem como um curta nacional. Ele está no volume 9. Mas apenas mencionei este conto, de cerca de cinco páginas. O vídeo acima é uma produção britânica de 2004 com Michael Sheen (o Tony Blair do filme "A Rainha") como Framton Nuttel, e Charlotte Ritchie como Vera, a menina de cerca de quinze anos que "faz sala" enquanto sua tia não chega. E começa a contar ao visitante sobre a terrível "tragédia" que se abateu sobre a tia, a Sra. Sappleton. O conto é um dos mais famosos de Saki, conhecido por tratar do lado cruel das crianças.