Eles partiram, os deuses, no dia da maré estranha. A manhã inteira sob um céu leitoso as águas da baía tinham subido mais e mais, atingindo alturas inauditas, pequenas ondas rastejando sobre a areia crestada que havia anos só era umedecida pela chuva e chegando a lamber as bases das dunas. O casco enferrujado do cargueiro encalhado na entrada da baía em algum momento fora do acance da memória de qualquer um de nós deve ter achado que lhe concediam a oportunidade de um relançamento. Eu nunca mais tornaria a nadar, depois desse dia. As aves marinhas vagiam e mergulhavam, em nada afetadas, ao que parece, pelo espetáculo daquela vasta bacia de água que inchava como uma bolha, de um azul de chumbo e com um fulgor maléfico. Pareciam anormalmente brancas, naquele dia, essas aves. As ondas depositavam na areia uma franja de espuma impura e amarela. Vela alguma desfigurava o horizonte alto. Não voltei a nadar, não, nunca mais. Com considerável atraso, li na última semana O Mar, na edição d...
Meu primeiro Thomas Mann foi Os Buddenbrooks , ainda durante a faculdade. Alguns anos depois, a trilogia José e seus Irmãos, As confissões do Impostor Felix Krull, A Morte em Veneza e, recentemente, Doutor Fausto. Mas faltava o que para muitos é o seu melhor trabalho. A descoberta do Raio X, em 1895, permitiu o diagnóstico precoce da tuberculose, ainda que, em 1907, a única forma de tratá-la era a internação em sanatórios. Thomas Mann acabara de publicar A Morte em Veneza quando, acompanhado de sua esposa, esteve em Davos. Lá surge a ideia para A Montanha Mágica. O Sanatório Berghof hospeda uma amostra d a sociedade europeia do início do século XX. Lá está Joachim Ziemssen. E é para lá que o engenheiro Hans Castorp, exausto com seus estudos e prestes a iniciar sua vida profissional, se dirige. Saudável – ao menos é o que pensa - sua ideia é visitar o primo e passar cerca de três semanas. Ao longo das mais de 820 páginas da minha edição da Companhia d...