Pular para o conteúdo principal

O livro negro, de Orhan Pamuk

Resultado de imagem para orhan pamuk  livro negro mundodek 
O livro negro
Ohran Pamuk
Companhia das Letras
Trad. Sergio Flaksman
2008, 515 p.


Não sei se meus leitores perceberam que as águas do Bósforo estão secando. Acho que não. Enquanto nos entretemos todos com a matança desenfreada que vem tomando conta das nossas ruas, febris e entusiasmados como crianças que assistem a uma queima de fogos, quem teria tempo para ler ou descobrir o que acontece pelo mundo? Já é difícil acompanhar nossos cronistas - lemos  seus textos enquanto nos acotovelamos em nossas estações das barcas, enquanto nos aglomeramos nos pontos de ônibus repletos, enquanto bocejamos sentados nos bancos dos táxis coletivos com as letras trêmulas diante dos nossos olhos. Encontrei a notícia de que lhes falo numa revista francesa de geologia.

Lançado em 1990 e publicado no Brasil em 2008, só agora cheguei a esse O livro negro, do Pamuk. 

O que aconteceu com Rüya (Sonho), esposa de Galip? O jovem advogado volta para casa em Istanbul e não encontra a mulher. Está convencido de que está escondida com o famoso colunista Celal Salik, que publica, há anos, seus textos no jornal Milliyet. É primo do advogado e meio-irmão de Rüya. Galip tem certeza de que os dois estão juntos, em algum lugar de Istanbul.

Mas não se trata de uma trama policial. Como diz o próprio Galip, a melhor história policial é aquela em que nem mesmo o seu autor sabe quem é o assassino". Ele examina as crônicas de Celal, em busca de pistas sobre seu paradeiro. Essas colunas cuidam do passado otomano; de seitas místicas; da hipótese de, um dia, o Bósforo simplesmente secar, extasiado pela poluição; das inúmeras civilizações que já passaram pela cidade. A narrativa alterna essas crônicas com a investigação de Galip. 

Galip acaba se passando primo, o que lhe traz grandes problemas. Começa a escrever para o jornal. Os leitores fazem perguntas - e a mais importante: 

- O senhor tem alguma dificuldade para ser quem é?

E, como se isso fosse pouco, completa:

- Existe algum modo de um homem ser apenas quem é?

Essa questão da identidade é cara a Pamuk em toda a sua obra. No final, uma conversa entre Galip/Celal e um “leitor fiel”, um certo Mehmet... a história que Galip escuta é quase que inteiramente a sua própria história. Seria essa voz a do próprio Celal? As partes marcam um encontro. Dirigindo-se para lá, percebe que as ruas estão interditadas, uma mancha branca que jazia na calçada, a dois passos da vitrine da loja de máquinas de costura Singer. Um só corpo...

Pamuk monta um grande e imenso labirinto, tão tortuoso como as ruas de Istanbul, a rigor o seu único personagem.

Comentários

  1. Sensacional!! Descrição envolvente que suscita a curiosidade do leitor .

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n