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A resistência, de Julian Fuks

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A resistência
Julián Fuks
Editora Companhia das Letras, 2016
144 páginas


Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado. Se digo assim, se pronuncio essa frase que por muito tempo cuidei de silenciar, reduzo meu irmão a uma condição categórica, a uma atribuição essencial: meu irmão é algo, e esse algo é o que tantos tentam enxergar nele, esse algo são as marcas que insistimos em procurar, contra a vontade, em seus traços, em seus gestos, em seus atos. Meu irmão é adotado, mas não quero reforçar o estigma que a palavra evoca, o estigma que é a própria palavra convertida em caráter. Não quero aprofundar sua cicatriz e, se não quero, não posso dizer cicatriz.

O romance rendeu ao autor o Prêmio Saramago de 2017. Durante a leitura, lembro do que Tolstoi escreveu sobre as famílias, na primeira frase de sua Anna Karenina. 

Os pais do narrador (Sebastián) são psicanalistas argentinos que, diante da ferocidade da ditadura argentina de 1976, fogem para o Brasil, onde nascem seus filhos. Mas o narrador, brasileiro, tem um irmão adotivo argentino.

Não se trata de uma narrativa linear - como nunca o são as memórias. Esse ponto torna o narrador uma figura não inteiramente confiável, mas, sem dúvida, bastante real e crível. As lembranças muitas vezes são mostradas de forma um tanto confusa, não por um defeito do autor. Pelo contrário: é uma das qualidades do texto:

isto é história e, no entanto, quase tudo o que tenho ao meu dispor é a memória, noções fugazes de dias tão remotos, impressões anteriores à consciência e à linguagem, resquícios indigentes que eu insisto em malversar em palavras.

Assim é que vai se formando um quadro com várias "resistências": a mais óbvia - os pais contra a ditadura que fogem para o Brasil que, entre os anos 70 e meados dos 80, também o era (ainda que menos violenta que a argentina); a resistência de Sebastián em relação ao irmão adotivo (e mais velho) e, a mais importante: a resistência do irmão em relação à família adotiva (o que acaba sendo natural se pensarmos nas possibilidades - sabemos que o regime militar sequestrava crianças de seus pais perseguidos e as recolocava em famílias cuidadosamente escolhidas).

Altamente recomendável. O autor esteve na Flip deste ano e falou da questão da autoficção e de seu processo de criação deste romance.

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